Em 1961, o já
maduro e magistral ator Spencer Tracy protagonizou o filme Julgamento em
Nuremberg. Somente 15 anos haviam decorrido desde o fim da guerra e a lembrança
do horror e das atrocidades ainda estava presente em todos os espíritos. Além
de acentuar a tensão, as imagens em preto e branco, paradoxalmente conferem ao
drama cores vigorosas. A obra cinematográfica retrata um dos numerosos
processos penais que Nuremberg sediou, entre 1946 e 1949, cada um deles
organizado para julgar uma categoria de incriminados.
(Imagens da internet) |
Daquela feita, os réus eram magistrados alemães que, desdenhando todo senso de justiça e atendo-se crua e comodamente ao ordenamento jurídico nazista, haviam condenado - amiúde à pena capital - gente reconhecidamente inocente. Por conveniência e por poltronaria, se haviam vergado ao catecismo oficial, iníquo e distorcido, desonrando assim a nobre função para a qual haviam sido formados.
Todos os
acusados acabaram sentenciados à pena de prisão perpétua. A cena traz um
diálogo entre o presidente do tribunal do júri - encarnado justamente por Spencer Tracy
- e um dos juízes condenados. Em meio minuto, pronunciam frases lapidares,
daquelas que valem pelo filme inteiro. O condenado não pede absolvição, mas
implora ao presidente do júri que procure ao menos compreender suas motivações. Numa
tentativa de descarregar a consciência, alega jamais ter imaginado que a
incriminação de um inocente aqui, outro ali, pudesse se multiplicar e fazer
que a coisa "chegasse ao ponto a que chegou".
A réplica do
protagonista é fulminante: "Herr Janning, a coisa 'chegou ao ponto a que
chegou' desde a primeira vez em que o senhor condenou à morte um homem sabidamente
inocente" Pano rápido e pausa para reflexão. A conclusão é universal.
Cristalina, decorre de trivial bom senso: juiz ímprobo é juiz ímprobo desde o
primeiro julgamento desonesto. Por analogia, criminoso é criminoso desde a
primeira transgressão. Assassino, que tenha matado um ou 10, assassino será
desde o primeiro homicídio. Ladrão, que tenha afanado um real ou um milhão -
nesses tempos de inflação, mais vale dizer um bilhão - ladrão será desde o primeiro
roubo. Ponto e basta.
No Brasil, de uns tempos para cá, a justiça parece ter despertado de letargia secular. Coisas
nunca dantes vistas vêm se sucedendo num crescendo alucinante. Parlamentares de
alta estirpe e grandes empresários são acusados, indiciados, processados e condenados.
Alguns são até despachados para a prisão. Um espanto! O povo hesita entre
assombro e júbilo. Escorados na doutrina que garante terem sido ladrões todos
os mandachuvas deste país desde os tempos de Tomé de Souza, os acusados
insistem em minimizar malfeitos cometidos. Botam fé na condescendência com que
o povo costuma brindar os poderosos. Mas o próprio termo malfeito, tão utilizado
nestes últimos anos, é um despropósito. Nossa língua é vasta e generosa - há que
dar a cada coisa o nome que a coisa tem. Contravenção é contravenção, delito é delito,
crime é crime. Indo mais longe, cada crime tem nome específico.
"Malfeito", genérico demais, não deve ser usado como palavra-ônibus.
Até o termo
corrupção, de tão rebatido, está se desgastando e perdendo substância. Assalto
ao erário não é corrupção, é assalto ao erário. Rapina na Petrobras não é
corrupção, é rapina na Petrobras. Contrato superfaturado de companhia estatal não
é corrupção, é peculato. Outros eufemismos estão em voga e vêm sendo bovinamente
repercutidos por espíritos pouco críticos. Quem forja dossiê falso não é aloprado,
é caluniador. Quem falsifica contas públicas não dá pedaladas, comete estelionato
e prevaricação. Numa referência canhestra a fatos dos quais tem apenas
conhecimento de ouvir falar, Lula comparou, dia desses, a "elite"
brasileira aos "nazistas que criminalizavam o povo judeu". Rematado
disparate é conversa para dar nó nos miolos. Como tem feito ultimamente, nosso
declinante mandatário deitou essa inacreditável falação diante de plateia
amestrada e previamente convicta. É verborragia a descartar sem sequer
desempacotar.
Em vez de
martelar essa "tal elite", assombração intangível que tanto parece incomodá-lo,
nosso ex-presidente deveria mandar passar, em sessão privada, o Julgamento em Nuremberg.
Que escolha a mais confortável de suas residências e convide os companheiros
mais chegados para apreciar. Importante: que prestem, todos, especial atenção
ao diálogo final. Sem muito esforço, entenderão que tanto é ladrão o que vai à
vinha quanto o que fica à porta.
(Extraído do artigo
Nuremberg, de José Horta Manzano. Caderno Opinião. Jornal Correio Braziliense,
pág. 13, de 1º de agosto de 2015).