O estabelecimento
do Estado do Bem - Estar Social gerou a necessidade de conferir à administração
instrumentos jurídicos adequados à consecução dos vários interesses públicos
que passaram a nortear a atuação estatal. A atividade estatal deixou de ser
apenas negativa, como opressora das liberdades individuais, para positiva, haja
vista o rol direitos fundamentais de segunda e terceira geração previstos constitucionalmente.
Assim, as
administrações fazendárias foram contempladas com prerrogativas excepcionais.
Entre elas desponta a previsão legal para o ingresso e estabelecimento
comercial em a mia autorização judicial, constituindo-se em ato com atributo de
autoexecutoriedade.
A legislação
tributária estabelece como dever do contribuinte informar ao fisco a ocorrência
do fato gerador e as circunstâncias em que se deu. Trata-se do chamado dever de
colaboração. Mais do que isso, a recusa em fornecer os dados fiscais exigidos
por autoridade fazendária é crime tipificado pela Lei n° 8.l37/90, art. 1°,
parágrafo único.
Dessa forma, os
documentos que retratam a ocorrência de fato gerador da obrigação tributária
devem estar à disposição-da administração fazendária. Trata-se de livros
contábeis e fiscais, emissão de notas fiscais, transmissão de arquivos
magnéticos, entre outros.
Algumas
circunstâncias permitem que a recusa do contribuinte seja solucionada pela
presunção de ocorrência do fato gerador, ou ainda pela não ocorrência de
crédito que alegue para reduzir seu débito fiscal. Contudo, em outras
situações, a presunção não é operacionalmente possível, quando, por exemplo, o
fisco não tem sequer indícios da ocorrência do fato gerador.
Nessas
circunstâncias, temos em tela o princípio da mínima intervenção estatal na vida
privada, o qual limita qualquer constrição à esfera do indivíduo a algumas
condições.
A primeira é a de
que tal atividade seja teleologícamente orientada, não podendo assim se dar por
mero capricho da administração. A segunda, deve existir uma proporcionalidade
entre a atividade estatal e o fim desejado. Por fim, essa atividade não deve
atingir núcleo essencial de direito fundamental.
Disso decorre que,
uma vez previsto legalmente, o poder de policia fiscal goza de autoexecutoriedade,
estando condicionado aos limites acima expostos, mas não prescindindo de
autorização judicial para seu exercício.
No âmbito federal,
o artigo 94 da Lei n º 4.502/64 prevê o acesso aos estabelecimentos comerciais
"franqueando os seus estabelecimentos, depósitos, dependências e móveis, a
qualquer hora do dia ou da noite, se à noite estiverem funcionando".
Dentro do Distrito
Federal, a Lei Distrital n° 1.254/96 prevê, no artigo 47, ser obrigação
acessória do contribuinte facilitar o livre acesso dos agentes fiscais da Secretaria
de Fazenda do Governo do Distrito Federal para a fiscalização de livros, documentos,
arquivos e mercadorias.
Ocorre que esse ingresso
é frequentemente condicionado à autorização do contribuinte ou à previa autorização
judicial, tendo em vista à proteção à inviolabilidade do domicílio. Esse, por
vezes, é o entendimento que vem adotando o Supremo Tribunal Federal.
De fato, o embate
entre o respeito aos direitos individuais e as prerrogativas da atuação do Estado
se tornam inevitáveis, porém os direitos fundamentais não são absolutos e por
isso se compõem,. A compreensão isolado da do caráter absoluto e inatingível de
direitos individuais, sem o seu confronto proporcional com a supremacia do
interesse público, inviabiliza a atuação do Estado e o exercício da justiça
distributiva.
Isso porque a
ampliação desmedida do conceito de "casa", abarcando o domicílio de
pessoa jurídica, derroga a atividade estatal de policia fiscal e, em consequência,
sacrifica o cumprimento de direitos sociais.
O núcleo essencial
de proteção constitucional é a esfera privada e íntima da pessoa humana. Por
isso, não se pode confundir a proteção da habitação com a do domicílio. Mais do
que isso. nos parece desvirtuar o fim da garantia constitucional equiparar o
conceito de casa ao de domicílio de pessoa jurídica.
Não foi sem razão
que a Constituição protegeu a casa e não o domicílio. A casa é espaço privado
inviolável, reduto do indivíduo, ressalvadas as hipóteses previstas taxativamente
pela Constituição. Em outro extremo, devemos recordar que a garantia
constitucional da inviolabilidade da casa exige que, mesmo diante de prévia
autorização judicial, o acesso forçado seja exercido durante o dia. A
jurisprudência convencionou como dia, para cumprimento da garantia constitucional,
o horário das 6h às 18h.
Isso implica dizer
que, adotado o posicionamento jurisprudencial acima retratado, os
estabelecimentos comerciais que tenham sua atividade após as 18 horas, como
casas noturnas, por exemplo, não podem nunca sofrer fiscalização em loco sem a
prévia autorização do contribuinte. Isso porque, mesmo a autorização judicial
não afastaria a garantia constitucional para permitir o ingresso dos agentes
públicos.
Finalmente, o posicionamento
supramencionado do Supremo Tribunal Federal não gerou súmula, permitindo a
discussão da matéria em sede judicial. Nesse sentido, o TRF da quarta região
firmou posição no sentido de que o ingresso nos estabelecimentos sem
autorização judicial decorre do poder de polícia afeto aos agentes da fiscalização
tributária.
(Henrique Paiva de
Araújo. Auditor Fiscal do Distrito Federal, doutorando em Direito
Constitucional pela Universidade de Buenos Aires. Revista Direito e Justiça.
Jornal Correio Brasziliense de 13 de outubro de 2014).