Buscando considerações deparei-me com um trecho do brilhante livro de Piero Calamandrei sobre a função jurisdicional:
“Um artigo do código de
processo civil obriga as partes e seus defensores a se comportarem com
“lealdade”. Do juiz, a lei não fala; mas a obrigação de lealdade está implícita
em sua função, especialmente na fase em que ele se põe a redigir a
fundamentação da sua sentença.
Sua lealdade consiste em
escrever na sentença os fundamentos verdadeiros que o levaram a decidir assim e,
antes de tudo, em procurar dentro de si (o que nem sempre é fácil) quais são os
fundamentos verdadeiros.
Um estudioso alemão
publicou, há cerca de dez anos atrás, um livro sobre a motivação das sentenças,
em que demonstra, com uma análise muito penetrante de uma centena de decisões
cíveis e penais, que muitas vezes os motivos declarados são bem diferentes dos
verdadeiros e que, com muita frequência, a fundamentação oficial nada mais é
que um biombo dialético para ocultar os móbeis verdadeiros, de caráter sentimental
ou político, que levaram o juiz a julgar assim.
Pode-se compreender, mesmo
quando ele quer ser, na fundamentação, sincero a qualquer preço, que assuma sem
querer uma posição mais de defensor do que de juiz. Quando o decisório já foi
adotado, o redator é levado naturalmente, como fazem os advogados para defender
seu cliente, a escolher e a pôr em evidência os argumentos que podem servir
para defender aquele dispositivo não mais discutível.
Mas a deslealdade
começaria quando a escolha dos fundamentos lhe fosse sugerida não pelo interesse
geral da justiça, mas pelo interesse pessoal da sua carreira, o que aconteceria
se o juiz – que, para explicar o dispositivo, poderia limitar-se a pôr em
evidência a circunstância de fato que o colegiado achou decisiva – se pusesse a
adornar a fundamentação com inúteis ostentações de ciência jurídica, para poder
servir-se dessa decisão como um dos títulos para a sua promoção; ou se o juiz,
para evitar que sua sentença fosse reformada em grau de cassação, procurasse
esconder as razões de direito, que o Tribunal poderia achar errôneas, sob uma fundamentação
de fato, que é inatacável, porque o Tribunal de Cassação não pode se manifestar
sobre ela.
Estas são pequenas
artimanhas cavilosas, às quais seria preferível que o juiz nunca recorresse, do
mesmo modo que não gostaríamos de perceber que, certas vezes, os magistrados,
chamados a enfrentar em suas sentenças questões gerais de ressonância política
(como certas questões relativas à liberdade religiosa ou à liberdade de
imprensa), decidem segunda a justiça no dispositivo, mas na fundamentação encontram
o meio de se refugiar por trás de argumentos de fato, a fim de não se comprometerem
a dar sua opinião sobre a questão de direito. Essa arte de eludir as questões
comprometedoras pode ser apreciável num diplomata; no juiz, eu a qualificaria
como inconveniente timidez.
O caso mais grave,
porém, seria o do magistrado que, encarregado de redigir a fundamentação de uma
decisão já adotada pelo colegiado, pusesse deliberadamente, em relevo, em vez
dos fundamentos capazes de justificá-la, os que melhor servissem para
desacreditá-la, com o propósito de fazer os leitores sagazes compreenderem que
a decisão é injusta, e de pôr na boca dos julgadores do recurso os argumentos
para reformá-la. Muitos anos atrás, essas sentenças eram chamadas ´suicidas´. Mas,
em vez de suicídio, eu falaria de homicídio premeditado, porque elas nasciam
sob a ameaça de um engenho explosivo de efeito retardado, que o juiz redator escondera
habilmente nas entrelinhas da fundamentação. Assim, a decisão ia pelo mundo
levando dentro de si, sem saber, a máquina infernal que no momento exato a
faria saltar em pedaços.
Na verdade, esse
protesto sorrateiro com que o juiz redator traía a vontade da maioria do colégio
tinha todas as características do atentado terrorista que se rebela, com a
violência, contra as regras do jogo colegiado; mais que uma deslealdade, era um
ato de sedição.”
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