Com a publicação do Decreto 8.327, no último
dia 17 de outubro, entrou em vigor no nosso direito interno, definitivamente, a
Convenção de Viena sobre Compra e Venda Internacional de Mercadorias. Conhecida
internacionalmente pela sigla CISG (Convention on International
Sales of Goods), a Convenção foi elaborada pela Comissão das Nações Unidas
sobre o Direito do Comércio Internacional (UNCITRAL) e aprovada por uma
conferência diplomática em 11 de abril de 1980 em Viena. Embora o Brasil já
houvesse aderido à Convenção por meio do Decreto Legislativo 538, publicado em
19 de outubro de 2012, havia, ainda, a necessidade de um decreto promulgador
por parte do Poder Executivo. A partir de agora, portanto, a Convenção passa a
ser norma integrante do ordenamento jurídico nacional, com status de lei
ordinária.
(Pintura concebida pelo artista visual Ton MarMel) |
Inúmeros são os motivos para festejar o nosso ingresso formal no cenário
jurídico do comércio internacional, sendo o principal deles a maior unidade
legislativa com nossos principais parceiros comerciais. O Brasil foi o 79° país
a aderir à CISG, que hoje já conta com 83 signatários, abrangendo parceiros
comerciais brasileiros responsáveis por mais de 90% o nosso comércio
internacional, segundo dados do Ministério do Desenvolvimento, Indústria e
Comércio Exterior.
A CISG regula as operações de compra e venda de mercadorias firmadas entre
partes que tenham estabelecimentos em países distintos. Portanto, se uma
empresa brasileira celebra um contrato de compra e venda de mercadorias com um
parceiro estrangeiro e elege a lei brasileira como aplicável, estará elegendo,
em verdade, a aplicação da CISG ao invés das normas preexistentes e aplicáveis
aos contratos de compra e venda domésticos. O mesmo ocorre, por exemplo, em
contratos internacionais de compra e venda que muitas vezes nem sequer são
formalizados por contrato escrito, mas apenas lastreados pela emissão de
“invoices”: mesmo sem deliberação pelas partes, esses contratos se sujeitarão à
CISG, caso a lei brasileira resulte como aplicável de acordo com as normas de
Direito Internacional Privado. Esse cenário evidencia a necessidade de que
advogados e empresários com atuação internacional estejam familiarizados com as
normas da CISG, que possuem uma série de peculiaridades comparativamente com as
normas sobre compra e venda previstas no nosso Código Civil.
Entre outros aspectos, a Convenção regula os direitos e obrigações do
vendedor e do comprador e estabelece um regime próprio tanto para a formação do
contrato quanto para a entrega e aceitação das mercadorias, bem como com
relação ao inadimplemento e suas consequências. A Convenção prima pela
preservação da confiança das partes, pelo cumprimento dos termos acordados e
pela manutenção do contrato, relegando a hipótese de desfazimento do vínculo
contratual para situações extremas (como no caso de uma "violação
essencial", nos dizeres da Convenção). Estabelece, ainda, parâmetros
próprios para a fixação da indenização decorrente de violação do contrato e
prevê o dever de mitigação dos danos, além da possibilidade de redução da
indenização devida ao agente que não tenha adotado tais medidas
precaucionárias.
As transações reguladas pela CISG podem abranger os mais variados objetos:
equipamentos, peças e maquinário industrial, commodities, combustível,
aparelhos eletrônicos, medicamentos, vestuário, entre outros bens. Aplica-se
aos contratos de fornecimento de mercadorias sob encomenda, a menos que o
comprador seja responsável pelo fornecimento de uma parcela substancial da
matéria-prima a ser empregada na fabricação. Quando, além do fornecimento de
mercadorias, o contrato também englobar prestação de serviços e esses
consistirem em parcela preponderante da contratação, a transação não ficará
sujeita à CISG. Além disso, a própria CISG afasta a sua aplicação nos casos de
aquisição de mercadorias para uso pessoal, familiar ou doméstico, alienações
realizadas em hasta pública ou no âmbito de execuções juidiciais, operações
envolvendo valores imobiliários — tais como a compra e venda de quotas ou ações
de uma companhia — títulos de crédito, a compra e venda de navios e
embarcações, bem como de eletricidade. Interessante ter em mente, ainda, que os
critérios interpretativos que moldam a aplicação da Convenção nos casos
concretos, quer seja por intermédio do Judiciário ou de Tribunais Arbitrais,
são distintos daqueles utilizados nos nossos contratos domésticos. A
interpretação da CISG deve levar em conta o seu caráter internacional, o
respeito à boa-fé no comércio internacional, além da uniformização de sua
aplicação. A CISG constitui relevante instrumento para impulsionar importações
e exportações, na medida em que reduz custos transacionais e confere maior
segurança jurídica quanto às regras aplicáveis, elemento esse que facilita a
aproximação dos “players” no comércio internacional, os quais provêm, no mais
das vezes, de sistemas jurídicos e culturas distintas.
(Fernanda Girardi Tavares. Advogada. Revista Direito e Justiça. Jornal: Correio
Braziliense. Brasília. 24.11.2014)