No famoso estudo sociológico escrito no
longínquo ano de 1936, Sérgio Buarque de Hollanda já assinalava como nós,
brasileiros, herdamos dos portugueses, um povo aventureiro por excelência, um
individualismo e um livre-arbítrio exacerbado, no que resultou entre nós uma
sensível repulsa tanto da noção de supremacia da lei, como dos próprios valores
da coletividade e da solidariedade. Cada brasileiro age, então, como se fosse Um
país em si mesmo, dotado de soberania, de modo que somente considera cumprir a
lei se e somente se reputá-Ia justa e adequada, raciocínio que se repete toda
vez que tiver de considerar concretamente sua aplicação. De fato, consoante
assinala o sociólogo citado, "os elementos anárquicos sempre frutificaram
aqui facilmente, com a cumplicidade ou a indolência displicente das instituições
e costumes" (cf Raizes do Brasil, 27a edição, São Paulo: Companhia das
Letras, 2014, p.37).
Um exemplo dessa supervalorização da ideia de
livre-arbítrio e dessa cumplicidade das instituições com o mais absoluto
anarquismo, é a aceitação, entre nós, da circunstância de uma pessoa poder
comparecer perante uma autoridade do Estado, na condição formal de investigada
ou, mesmo, de ré em um processo civil ou criminal, e mentir descaradamente, sem
qualquer pudor. Nesse contexto, é admitido, assim ao investigado como ao réu,
inventar estórias, fantasiar, pôr a culpa maliciosamente em terceiros, e mesmo
criar dolosamente argumentos, com o fim específico de tentar confundir as
autoridades e enganá-Ias quanto à apreciação dos fatos, que tudo se dará por
válido, dentre de nossa amplíssima noção de "ampla defesa”.
Realmente, na esmagadora maioria das demais
nações civilizadas, uma pessoa formalmente investigada ou ré pode logicamente
exercer o seu direito de permanecer calada, para não se autoincriminar. Mas, se
abrir a boca para falar alguma coisa, terá de dizer a verdade, sob pena de ser
processada pelo crime de perjúrio, caso se verifique que aquilo que disse era
mentira. Aqui, todavia, perjúrio só pode ser aplicado a testemunhas, enquanto
os investigados e réus depõem como informantes, onde sua palavra não é levada a
sério, a tal ponto que mesmo se confessarem cabalmente seus crimes, tal confissão
não porá fim, nem à investigação, nem ao processo.
O próprio Supremo Tribunal Federal tem
jurisprudência em que expressamente reconhece irrestritarnente o “direito de
mentir" de cada brasileiro (HC 75257/RI, Primeira Turma, Relatar, Ministro
Moreira Alves, julgado em 17/06/1997). Também o Superior Tribunal de Justiça
admite o direito de mentir, conquanto mais recentemente tenham surgido decisões
daquela Corte afirmando o caráter socialmente desabonador da mentira (Resp
801249/SC, Terceira Turma, Relatora; Ministra Nancy Andrighi. Julgado em
09/08/2007) assim como várias
decisões no sentido de que investigados ou réus podem mentir sobre qualquer
fato que lhes seja imputado, menos sobre sua própria identidade, o que tem sido
considerado um abuso do direito de mentir (cf., a título de exemplo, o HC
151866/RJ, Quinta Turma, Relator, Ministro Jorge Mussi, julgado em 01/12/2011).
Essa novel jurisprudência, mais restritiva, também considera ilegal a prática
de crimes autônomos para o fim de autodefesa (HC 205292, Sexta Turma, Relator,
Ministro Sebastião Reis Júnior, julgado em 04/12/2012).
Aproveitando essa mudança nos rumos da
jurisprudência nacional, releva salientar que, nos tempos atuais, em que a
Operação Lava-Jato procura por a limpo as nossas instituições e resgatar a
verdade tão odiosamente escondida dos brasileiros por criminosos que saquearam
o patrimônio público nacional na última década, e que não obstante afirmam que
"nada sabiam", urge que o valor intrínseco da verdade seja mais
respeitado, em nome de uma maior autoridade e dignidade da Justiça e do
verdadeiro amadurecimento do nosso Estado Democrático de Direito.
Nesse diapasão, impõe-se de lege ferenda, portanto, a aprovação de
projeto de lei que determine a ampliação da figura criminal do perjúrio, atualmente
inserida dentre os Crimes contra a Administração da Justiça e devidamente
capitulada no art. 342 do Código Penal, e seus parágrafos, para incluir como
possíveis sujeitos ativos também os investigados e réus, a exemplo das
testemunhas e dos peritos, contadores e intérpretes, já obrigados por lei a
dizer a verdade.
(Vitor Fernandes Gonçalves. Procurador de
Justiça do Ministério Público do TJDFT. Correio Braziliense. Caderno Direito e
Justiça, pag. 2, de 28 de março de 2016).
Nenhum comentário:
Postar um comentário