(Paixão brasileira. Pintura do artista Ton MarMel)
Assim que a sombra invade os céus,
o esplendor eclipsado dos tempos que se foram
recompõe-se em meu pensamento,
inspirando-me cantos dignos de meus
antepassados.
Com estas
palavras, contam os antigos que um bardo escocês que vivera no século III da
nossa era, Ossian, dá início ao seu poema épico Cantos de Ossian³,
poema melancólico e rico em imagens, cantando a guerra e o amor de uma época longínqua,
num país de brumas; publicado pela primeira vez em 1760 (?), ao que consta
(informação verbal)¹.
Segundo
contam, esse poema teve importância fundamental no período histórico do
romantismo, influenciou artistas famosos no fim do século XVIII e início do
século XIX. Segundo dizem, a importância que deram a esse poema foi tanta que
Herder e Heine o exaltaram; Goethe nele se inspirou; Madame de Staël precisou
rever a história da literatura a partir de um sistema construído sobre os ditos
poemas ossiânicos; Napoleão levava sempre consigo um exemplar dos tais Cantos;
Chateaubriand, Vigny, Musset sofrem profundamente sua influência. Grandes
pintores — Ingres, Girodet, Gérard — ilustraram passagens do poema em enormes
quadros. A Gruta de Fingal, uma das mais célebres composições de
Mendelsohn, teve sua origem nos tais Cantos de Ossian, afirmam.
Hilariamente,
dizem que tempos depois se descobriu que a pessoa do tal Ossian jamais
existiu e que os tais Cantos foram escritos na verdade por um tal de
James MacPherson, professor primário escocês da segunda metade do século XVIII,
que anteriormente havia publicado em seu próprio nome um poemeto que fora um
grande fracasso. Daí a razão dessa última publicação sob outro nome, sob o nome
de um personagem fictício que (segundo contam) marcou profundamente a evolução
da literatura; e segundo consta ainda, em decorrência do tom mistificado e
fantasmagórico dos poemas, no final do mesmo século os tais Cantos já
haviam caído no esquecimento.
Entretanto, em
sendo verdade o relatado, é certo que os tais Cantos corresponderam
perfeitamente a uma sensibilidade que a época pediu. A tal ponto que, embora
desde o início alguns céticos desconfiassem da malandragem, acreditou-se em Ossian
porque o momento talvez precisasse dele pelas mais variadas razões, dentre
elas, o fato de que as culturas do norte passariam a ter seu grande
poeta-ícone, até então inexistente, através do que Ossian representava, fazendo, assim, frente à civilização mediterrânea que tinha seu grande e consagrado poeta: Homero.
De toda sorte,
é certo que desse episódio restou para a história a lição de como conseguir
enganar os espíritos mais brilhantes, que, num certo sentido e dado momento,
“pediram” para ser enganados, “desejaram” acreditar no bardo escocês, confiaram
na autenticidade dos poemas, garantiram a autenticidade dos poemas, até provas
em contrário (informação verbal)².
O assunto sobre falsificações sempre
despertou grande curiosidade. A habilidade em enganar, o poder do ilusionismo,
a perícia na imitação, fazem do falsário um personagem maroto, capaz de
prodígios desabituais, capaz de rir nas barbas dos especialistas, e célebres
são os falsos bronzes da Renascença, de autoria de Dossena e Bastianini.
Célebres, os quadros contemporâneos de Elmyr de Hory — que Orson Wells mostrou
desenhando um "Matisse de 1936" em seu notável filme F for Fake (informação verbal)³.
Famoso também foi o fato corrido durante
a Segunda Guerra Mundial, na Alemanha, no qual foram vendidas telas
desconhecidas de Vermeer: pintor genial holandês do século XVII que fizera
poucas obras, cuja descoberta de novas obras tinha uma grande importância para a
história da arte. Assim, terminada a guerra, processaram o homem que encontrara
e vendera os quadros para os alemães, pois se tratava de alienação de bens da
cultura nacional, de alta traição, que inclusive sujeitava o vendedor à pena e
morte. Assim, diante de tão graves acusações o réu, Van Meergeren, prefere
confessar: “os Vermeer eram falsos e haviam sido pintados por ele”.
Incrédulos, no começo, peritos, críticos, especialistas, conservadores, todos foram unânimes em
afirmar a autenticidade dos quadros, dizendo que Van Meergeren, premido pela
situação que poderia levá-lo a morte, tentava uma saída menos fatal. Mas, Van
Meergeren, na prisão, pede telas e tintas, e, na prisão, produz um Vermeer
espantosamente "autêntico" (informação verbal)4.
Bernard
Berenson, um dos mais célebres peritos do Século XIX [?], dizia ironicamente
que “noventa por cento das obras que se encontram em museus tradicionais são
falsas”. Frase de efeito, exagerada, mas que traduz um fundo de verdade. Não só
porque restaurações duvidosas muitas vezes "falsificaram" os quadros.
E nem se fale nas mistificações de pequeno porte, miseráveis, que ocupam e
fazem viver antiquários inescrupulosos no mundo inteiro. Estas não vão nem para
os museus (informação verbal)5.
Por
certo, os quadros de Leonardo ou Rembrandt fazem deles gênios.
Conseqüentemente, um quadro, qualquer quadro, de Leonardo ou Rembrandt, é
tomado como um quadro genial. Uma coleção que possua um Rembrandt tem prestígio
— mais do que se possuísse apenas um "anônimo holandês do século XVIII",
ou um "discípulo de Rembrandt". Se a obra não é assinada,
se não há documentos de época que confirmem a autoria do pintor, ela precisa da
confirmação de especialistas que certifiquem sua autenticidade. Como se pode imaginar, esses
especialistas, inclusive hoje, raramente estão de acordo. Mas, obtendo-se o
assentimento de uma autoridade de peso ou a concordância de uma maioria,
cola-se, ao lado do quadro a etiqueta: "atribuído a Rembrandt".
Um conservador de museu, por
exemplo, está, no entanto, convencido de que o quadro é de Rembrandt e, em sã
consciência, retira o "atribuído a". E vai além: o quadro é de
autoria duvidosa, mas o amor pelo seu museu faz com que ocolecionador convicto,
afirme sem hesitação a autenticidade. Ou ele próprio faz a peritagem, e dá foros de nobreza ao
seu acervo, acrescentando um Caravaggio, um Antonello della Messina.
Conta-se
que certo colecionador brasileiro, competente e apaixonado pela sua coleção,
descobriu entre seus quadros autorias que ele afirmava célebres. E questionado,
certa feita, sobre a certeza de que uma determinada obra era autêntica, se
pertencia a determinado pintor genial, respondeu, candidamente: "Porquê?
Não parece?".
Para
tentativa de tranquilização geral, há muita competência e saber sério no mundo
das artes. Peritos, historiadores, críticos, marchand, galerista, leiloeiro,
empresário cultural, produtor, editor, e, atualmente,
até advogados, contribuem para o seu enriquecimento. Prova disso reside no fato
de que a Vênus de Dresde de Giorgione foi atribuída inicialmente a um
pintor secundário. No entanto, ela só se tornou o grande quadro que se conhece
graças ao arguto connaisseur Morelli, que descobriu nela a mão do mestre
e autêntico feitor.
Por
outro lado, sabe-se que o pintor desconhecido de hoje poderá ser o mestre
valorizado de amanhã. Sabe-se, cinicamente, que a morte de um pintor provoca a
rarefação da oferta, e, portanto, o aumento do preço de seus quadros: compra-se
hoje, barato, a obra cara de amanhã. Assim, o artista reduz-se à sua
assinatura, endosso de investimento seguro, garantia do bom negócio. O quadro não é mais arte: tornou-se uma
convenção financeira. E a prosperidade da pintura pode ser constatada
facilmente no passado por um fato simples: os únicos artistas verdadeiramente
milionários foram os pintores Picasso, Braque ou Matisse, este inclusive era
rico advogado em Paris e comprou a única pintura que Vincent van Gogh conseguiu
vender na vida; embora hoje os milionários sejam os músicos que tocam nas
“micarês” do carnaval na Bahia.
Ainda
hoje, o marchand todo-poderoso lança o pintor
internacionalmente e controla sua posição no mercado, estocando as obras,
diminuindo a oferta, aguardando a alta de preços, vendendo no momento
estratégico, pressionando de mil maneiras os meios de valorização. No caso de um pintor morto, por exemplo, a
valorização pode efetuar-se através do sistema de “AUTENTICAÇÃO”: o marchand
compra um quadro não assinado que poderia ser, digamos, um Portinari.
Tentará obter de uma "autoridade competente" — especialistas,
peritos, ou mesmo pessoas da família, próximos do pintor — o reconhecimento
oficial de que a tela é realmente de Portinari, para que seu preço aumente
consideravelmente. Nesse modo de
proceder, muita malandragem, muita falsificação, muita falcatrua entra
em jogo. Há também o crítico que celebra, para a galeria "amiga",
este ou aquele artista; há a reportagem em revistas, especializadas ou não. Há
a exposição em locais culturalmente prestigiosos, que por
"contaminação" valorizam o artista. Por esses meios o pintor beneficia-se
de uma notável publicidade "cultural", indireta, mas eficaz.
Por sua vez, muitos marchands, apaixonados sinceros pela pintura, tiveram e tem um
papel cultural importante e digno de respeito, confiando em artistas
desconhecidos e incompreendidos, ajudando-os a se imporem ao público. Mas,
nessa mescla complexa de dinheiro e cultura, o princípio mesmo da
"incompreensão" — isto é, das novas formas de arte em luta contra as
já estabelecidas — participa do circuito econômico.
Do mesmo modo, os pintores
mudam de "fases". Nunca, na história da arte, houve tão grande número
de arte sendo copiada clandestinamente pela internet
sem qualquer respeito ou pagamento
de direitos aos autores criadores; nunca houve tão grande número de
artistas que modificam, sucessivamente, seus modos de pintar, seus estilos.
Isso também é compreensível: a necessidade de acompanhar o que está sendo feito
e produzido no mundo globalizado; também o colecionador tem que ser estimulado
para novas compras — as fases, os movimentos e experimentações novos existem
para atraí-lo.
E tudo isso é bem triste. Mas,
não se pode esquecer que esse sistema, matreiro, cobiçoso, por vezes
desprezível e nos limites da desonestidade, alimenta e faz a cultura sobreviver
com grande vigor.
Úteis, indispensáveis na
formação de uma cultura visual e sonora, as técnicas de reprodução digital
hoje já não são suficientes. Não é apenas necessário se ter acesso às artes
pelos métodos atuais de CDs, internet, MP3, televisão; é
necessário também voltar a freqüentar museus, concertos, teatros, cinemas,
exposições, shows. É necessário visitar monumentos. É necessário poder
ler e ter acesso aos locais de arte a preços populares, ou mesmo de graça.
Assim, num país como
o Brasil, tem-se que acrescentar ao esforço que a obra, pela sua complexidade,
exige, o esforço de alcançar concreta, materialmente, a produção artística para
se poder conseguir detectar o falso daquilo que é autêntico. E esse esforço
coloca de per si o problema, não mais
individual, mas social, do direito à obra autêntica e do respeito ao autor que
muitas vezes se vê perdido, sem saber a quem recorrer para sobreviver em meio a
tanta “pirataria” na rede mundial de computadores.
De toda
sorte, é fato que muitos catálogos precisos foram estabelecidos graças ao
esforço e à erudição imensa de “grandes especialistas”. Mas é preciso não
esquecer que o princípio da atribuição repousa sobre a incerteza, e que a decisão definitiva pode depender,
em última análise, de um ato de “autoridade”. Por isso, confia-se no
“especialista” por falta de opção, na falta de outros meios e documentos de
prova, sabendo-se que, a todo instante, corre-se o risco de se engolir gato por
lebre; sabendo-se que a
fraude e falta de competência não é privilégio do universo da arte; sabendo-se
que todos os dias os meios de comunicação anunciam controvérsias entre médicos,
doutores, sabedores, fazedores de arte e peritos; sabendo que todos os dias
tribunais são instados a se pronunciar sobre autenticidade e que, apesar de tudo, artistas de incontestável
qualidade existiram, existem e sempre existirão.
Assim, seja por mero deleite e modismo ditado
pela elite cultural, seja pelo comodismo geral reinante, o fato é que existem
tais profissionais-instrumentos que costumam publicar “o que é ou não arte
autêntica”; e que embora sofram imensa resistência quanto às suas indicações
sobre o que seja ou não arte autêntica, o fato é que “pacificamente” suas
opiniões são aceitas, até porque o tempo é ótimo juiz de todas as coisas e a
morte solve, ou resolve, tudo; além disso, o Judiciário existe para dizer do
direito quando se expõe o fato.
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1 FAYARD, A. Manifestação em palestra sobre L’art et la vie (A Arte e a vida), proferida em Paris, 1966 (?).
2 FAYARD, A. Manifestação em palestra sobre L’art et la vie (A Arte e a vida), proferida em Paris, 1966 (?).
3 FAYARD, A. Manifestação em palestra sobre L’art et la vie (A Arte e a vida), proferida em Paris, 1966 (?).
4 FAYARD, A. Manifestação em palestra sobre L’art et la vie (A Arte e a vida), proferida em Paris, 1966 (?).
5 FAYARD, A. Manifestação em palestra sobre L’art et la vie (A Arte e a vida), proferida em Paris, 1966 (?).
(Ton MarMel)